De erro em erro. De um lado para o outro.

13 de março de 2012

A-m-i-z-a-d-e

A sua professora de português tinha graves problemas. Ainda mal se tinham sentado nas carteiras, e ela estava já a pedir que escrevessem um texto sobre a amizade. Sobre a amizade? O que queria a professora que eles escrevessem ou fizessem? Uma análise sintática da palavra a-m-i-z-a-d-e? Tinha imensa piada. Debaixo de uma itensa chuva de perguntas, finalmente a professora acabou por explicar. Mas a explicação só veio reforçar aquilo que já todos sabiam: dentro daquela cabeça existiam problemas gravíssimos e que tinham de ser tratados com a máxima urgência, sob pena de se tornarem contagiosos.

- Imaginem a amizade como um cocktail. Agora expliquem-me como é que fariam esse cocktail e mo serviriam. Quero que me entreguem isso no final da aula.

A sala ficou perplexa por um momento, mesmo antes de cair num alvoroço tremendo e ser novamente silenciada pela certeza de que aquilo tinha mesmo de ser feito. Sem saber muito bem por onde começar, tirou uma folha em branco do caderno, pegou na caneta e começou:

"O Cocktail da Amizade

Ontem aconteceu uma coisa estranha no trabalho. Para quem não sabe, eu sou barwoman num dos melhores bares da capital. Mas ontem fizeram-me o pedido mais estranho que alguma vez me tinham feito. Um senhor já com alguma idade, com um ar carrancudo e triste, pediu-me um cocktail da amizade. Nunca tinha servido nenhum e, na verdade, não fazia a mais pequena ideia de como fazê-lo. Mas no meu trabalho tenho de andar de braço dado com a imaginação e, portanto, rapidamente resolvi o problema. O facto do senhor gostar ou não da minha combinação de ingredientes, esse já seria um problema com o qual teria de lidar mais tarde.

Quando peguei no shaker, sabia que teria de ser cuidadosa na escolha dos ingredientes. Um pequeno erro e aquilo poderia ser um fiasco para nunca mais lembrar. A curiosidade foi o primeiro ingrediente daquele cocktail. Muitos podem não perceber porque escolhi a curiosidade, mas a verdade é que é nela que tudo começa. Coloquei uma boa quantidade de persistência e isso obrigou-me a adicionar uma quantidade equivalente de confiança. Na amizade é necessária uma boa dose de persistência para que se consiga conquistar a confiança daqueles a que queremos chamar de amigos. Não basta ser-se curioso. A curiosidade deve surgir apenas como um impulso para a aproximação. É certo que, numa primeira fase, ninguém vá partilhar connosco os segredos de uma vida. Por isso temos de ser persistentes e conquistar a confiança da(s) outra(s) pessoa(s). 

Juntei partilha. Juntei preocupação q.b.. Juntei disponibilidade e companheirismo. Juntei sinceridade, lealdade e frontalidade. Deixei repousar, porque por vezes a frontalidade pode tornar-se demasiado forte e complicada de digerir. Se não for comedida pode deixar-nos um sabor amargo na boca. Difícil de esquecer.   Deixei escapar um pouco de cedência e compreensão e, para finalizar, polvilhei com personalidade. Agitei com cuidado. Servi com uma rodela de boa disposição.

O senhor continuava carrancudo. Estendeu a mão, pegou no copo e bebeu um pouco. Não disse nada. Nem uma palavra. Mas a sua expressão tornou-se muito mais aberta. Antes de sair, voltou a chamar-me. Entregou-me um bilhete e virou costas, enquanto sorria. Desdobrei o pedaço de papel que deixou ao meu cuidado e, enquanto lia, os meus olhos encheram-se d'água e na minha cara desenhou-se um sorriso maior que o mundo.

«Obrigada pelo cocktail que me serviu. Até hoje era um homem infeliz porque, durante toda a minha vida, afastei aqueles que se preocupavam comigo. Hoje percebi que foi o meu orgulho que me fez prisioneiro da minha própria vida. Hoje, graças a si, percebi que nunca soube o que significava a amizade e que é por isso que hoje sou solitário, carrancudo e triste. Obrigado pela sua ajuda. Não irei esquecer-me, ainda que, nos poucos dias que me restam, eu saiba que vou continuar sozinho.»"

Para Ouvir: Toy Story - You've Got a Friend In Me                      Para Ver: The Bucklet List (2007)

2 comentários:

  1. De todos os textos que li, este foi sem dúvida o que me chamou mais atenção. Talvez porque me tenha revisto nesse cocktail da amizade, talvez por ser uma acérrima defensora dos valores da vida e porque o que me faz mais temer a velhice não seja a idade a passar...é o temor pela solidão!
    Parabéns pelos textos e continua a escrever assim que eu prometo ser uma fiel seguidora :) Beijinhos
    Maria João Correia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigada Maria João. Fico muito feliz que tenhas gostado. este blog serve precisamente para que as pessoas se possam identificar com aquilo que escrevo.
      Quanto ao "A-m-i-z-a-d-e", é curioso que este tenha sido o texto que escrevi com menos confiança e que, no entanto, se tenha tornado o texto mais lido em poucos minutos.

      Mais uma vez agradeço o teu comentário e a tua simpatia. Beijinhos

      Eliminar