De erro em erro. De um lado para o outro.

4 de abril de 2012

Negociação: Começo

Contar-vos a minha história levaria horas e esgotaria a vossa paciência. Mas nunca fui boa em resumos. Gosto das palavras. Gosto da sonoridade e da expressividade das palavras. Acho que, tal como Bernardo Soares, "gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar". Mas hoje, para que percebam o porquê de estar aqui, vou ser rápida e sucinta.

Tenho 22 anos e foi-me diagnosticado aquilo a que os médicos chamam de leucemia mieloide aguda. Digo médicos porque para mim aquilo que tenho tem um nome muito mais curto, simples e de fácil compreensão: Cancro. Não estou aqui para que tenham pena de mim. Estou farta que tenham pena de mim. Estou aqui para que possam passar a olhar-me como olham todos os outros. Não sou nenhum bicho de sete cabeças. Sou apenas uma jovem de 22 anos cujo cabelo cai devido aos efeitos dilacerantes da quimioterapia. Mas eu sei isso. Não preciso que todos os olhos me digam sempre o mesmo.

Antes de me ser diagnosticada a leucemia era uma rapariga completamente normal. Nunca tive comportamentos desviantes. Bem...isso era o que eu pensava. Depois comecei a sentir-me sempre cansada, mesmo quando não fazia nada. Parecia estar sempre sob o efeito de uma substância qualquer. Como na altura estava em época de exames, achei que fosse apenas a minha reacção natural ao stress e à ansiedade. Depois comecei a ter sintomas típicos de uma gripe. Achei melhor ir ao hospital, antes que a minha nova amiga decidisse piorar. A espera, como aliás já é habitual nos hospitais públicos, prolongou-se por horas. Quando finalmente me sentei em frente ao médico, mal pude acomodar-me na cadeira. Sim, tinha uma gripe, dissera ele. Receitou-me um antibiótico e deixou-me o caminho livre para me dirigir à farmácia.

Comecei a tomar o antibiótico nesse mesmo dia. Fi-lo durante os 2 dias seguintes, e depois a minha condição piorou. Tinha enormes dificuldades em respirar, e a febre, sempre escaldante, teimava em não baixar. Fui novamente ao hospital. E desta vez o médico foi mais inteligente porque, pelo menos, olhou para mim. Expliquei-lhe toda a situação. O cansaço, a suposta gripe e o agravamento da mesma. Ele disse-me que talvez devesse prescrever-me alguns exames. Só para que pudesse perceber melhor aquilo que poderia passar-se comigo. E que ia encaminhar o meu processo para um colega seu em Lisboa. Estranhei a situação, mas o médico não devia ter mais do que 26 anos. Talvez estivesse apenas a ser cuidadoso, ao contrário do seu anterior colega, que me mandara para casa com um antibiótico para a gripe que eu nunca tive.

Entre aquela consulta e a seguinte, já em Lisboa, passaram cerca de três semanas. Eu estava nervosa. Quando entrei no consultório do Dr. Miguel, fiquei surpreendida. Era um jovem alto e em boa forma física, talvez na casa dos 27 anos. O seu cabelo desalinhado cor de mel fazia sobressair os seus olhos verdes. As suas mãos, de dedos grandes e finos, eram típicas de alguém que nunca fizera mais do que estudar. O seu sorriso aberto e descontraído deixou-me um pouco mais tranquila. Mas não o suficiente para descontrair o meu corpo e me libertar daquele aperto que sentia no estômago, como se alguém tivesse acabado de enterrar o punho na minha barriga.

O Dr. convidou-me a sentar. A sua expressão fechou-se e a sua voz quente e acolhedora parece ter mergulhado num tanque de água gelada. Por mais que tente lembrar-me da conversa que mantivemos durante os minutos seguintes, não consigo. Presumo que o meu sistema nervoso tenha gerado um apagão generalizado em todas as conversas circunstanciais desse dia. Quem dera tivesse apagado algumas das coisas que aconteceram depois.

- Sabe Inês, às vezes o nosso organismo gera comportamentos atípicos. Ao analisar os seus exames, parece-me que, de facto, este é um desses casos...
- Dr., com o devido respeito, a sua abordagem circunstancial em nada ajuda a minha compreensão. Estou doente, certo? - sentia-me a arder, mas desta vez não era a febre, mas sim o nervosismo entranhado em cada milímetro do meu corpo.
- Sim. - responde ele com um ar ainda mais sério. Se não tivesse acabado de o conhecer, diria que existia ali uma dor reprimida.
- E o que tenho exatamente? - neste momento senti as lágrimas a inundar-me os olhos.
- Leucemia... - fez uma pausa ponderada, como se precisasse de recompor-se para o que iria dizer a seguir. - Leucemia mieloide aguda. Lamento.

Uma vez, estava a jogar à bola com os rapazes da minha turma, no campo da escola. Um deles, sem querer, rematou com demasiada força e, quando dei por mim, estava a parar a bola com a minha barriga. Quando a bola parou, eu caí, sem ar nos pulmões, devido à força com que a bola bateu no meu estômago.
A sensação era exatamente a mesma. Todo o ar parecia ter-se esvaziado dos meus pulmões. O chão fugiu debaixo de mim e fiz um esforço imenso para não deixar as lágrimas cair.

Cancro. Era só o que conseguia pensar.

(Continua...)

Para Ouvir: Anna Nalick - Breathe (2 AM)                             Para Ver: My Sister's Keeper (2009)

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