De erro em erro. De um lado para o outro.

9 de abril de 2012

Negociação: Indefinição

Faz frio cá fora, mas ele está aqui comigo. O Dr. Miguel. Mas bem, talvez seja melhor explicar-vos como viemos aqui parar. Não há muito para contar, mas sou uma contadora de histórias. E pelo menos assim não penso no bicho que, todos os dias, me vai roubando o pouco tempo que me resta.

Quando me convidou para beber um café eu estava à espera de mais uma dose de quimioterapia. Cumprimentou-me, como faz todos os dias. Eu respondi, secamente, porque ele é, repito, a personificação do meu pior pesadelo. Sentou-se simpaticamente ao meu lado e olhou-me com aqueles olhos cor de mar e esperança. Já referi que adoro os olhos dele? Não fosse a necessidade de encontrar alguma verdade neles quando ele me explicou que eu estava doente, e teria olhado nos olhos dele apenas pela tranquilidade que eles me transmitem.

- Como está? - pergunta ele, enquanto esboçava um sorriso grande e acolhedor.
- Melhor que nunca. Sempre quis ter uma destas em casa. Agora que posso sentar-me nelas quase todos os dias, é a concretização de um sonho. - disse, enquanto tentava conter uma risada. Referia-me ás cadeiras confortáveis em que nos sentam para a quimioterapia. Ele pareceu confuso, mas depressa soltou uma gargalhada sonante.
- Já pensei em levar uma lá para casa, mas acho que ia destoar da decoração moderníssima da minha sala. - afirmou, soltando outra gargalhada.

Rimo-nos os dois porque, na verdade, sabíamos que a conversa se iria esgotar quando os nossos risos fossem silenciados pelo constrangimento.

- Gosto do seu sentido de humor. Devíamos combinar um café um dia destes. Não quero que olhe para mim como um bicho papão, portanto estou oficialmente a convidá-la.

Fiquei em silêncio durante uns segundos. Milhares de pensamentos atravessaram a minha mente. Bicho papão? Ele não percebe. Talvez devesse inventar uma desculpa para não aceitar o convite. Uma festa de anos, ou um jantar de família. Quando finalmente respondi, não tive qualquer controlo sobre as minhas cordas vocais, porque não era aquilo que queria responder.

- Sim, claro, podemos combinar qualquer coisa. Talvez amanhã seja um bom dia. - depois de me ouvir senti uma necessidade enorme de tapar a boca, num reflexo estúpido de nervosismo. Mas contive-me, e soltei apenas alguns risinhos que, apesar de baixos, não deixaram de ser ridículos.
- Sim. Amanhã é um excelente dia. - afirmou ele, com um ar entusiasmado. Mas eu diria que estava a conter o riso. Sou tão pateta.

Ele levantou-se. Pareceu.me realmente alto, mas talvez fosse apenas uma ilusão de óptica, as pessoas não crescem assim de um dia para o outro. E de qualquer das formas, as minhas vertigens eram várias, por causa do nervosismo que sentia. Recompus-me na confortável cadeira, e aproveitei também para recompor o espírito. Estava a chegar a hora da quimioterapia.

Faz frio cá fora. Mas a conversa que mantenho com o Dr. Miguel - ainda não me habituei à ideia de o tratar por tu - é agradável e deixa-me menos exposta a danos externos. Ele é médico e consequentemente inteligente. Mas há mais qualquer coisa. Um mistério transparente no olhar. Uma sinceridade inocente no sorriso. Uma expressividade natural no movimento das mãos. Uma liberdade quase infantil de movimentos corporais que me deixa pasmada. E o calor que emana nas palavras. O calor que me envolve e me protege do frio que se faz sentir, dentro e fora de mim. É bom estar aqui, com ele, mesmo não sabendo onde isto me vai levar. Espero um pouco. Talvez amanhã consiga ver um pouco mais do caminho.

(Continua...)

Para Ouvir: Os Azeitonas - Anda Comigo Ver os Aviões           Para Ver: A Walk To Remember (2002)

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