De erro em erro. De um lado para o outro.

29 de abril de 2012

Negociação: Lembra-te de Mim

Disse que ia ser sucinta. Mas acabei por me perder na minha própria história. Fui acrescentando páginas aos meus dias e palavras aos momentos. Fui esvaziando o meu coração neste pequeno diário, e cuspindo o desespero em palavras para aqueles que quiseram lê-las. Esqueci-me de como poderia tornar-se chato e entediante. Bem, de qualquer das formas, a minha história está a chegar ao fim, porque eu estou a piorar.

Os dias tornaram-se, todos eles, pesadelos. As dores consomem cada milimetro da minha esperança, e é no Miguel que acabo, sempre, por encontrar o meu analgésico. A presença dele não cura, mas acalma, da mesma forma que o sofrimento não mata, mas fere. Os meus pais também têm sido muito importantes para mim durante estes meses. Mas com eles é diferente. Persiste sempre o medo da desilusão. O receio de fraquejar aos olhos de quem fez tanto por nós. Aos olhos de quem nos ensinou a ser fortes e destemidos, numa altura em que o nosso maior desafio era aprender a andar de bicicleta. Aos olhos de quem nos estendeu sempre a mão de cada vez que caímos. Aos olhos de quem ouviu o que não merecia, tantas e tantas vezes, e que ainda assim ficou, sem nunca hesitar.

- Em que estás a pensar? - ouço. A voz dele será sempre inconfundível.
- Em tudo e em coisa nenhuma - respondo, e pela primeira vez desde que decidi lutar contra o cancro, apeteceu-me chorar. Chorar muito.
- Posso fazer alguma coisa? - pergunta numa voz doce e terna.
- Podes ficar aqui, não gosto do silêncio solitário. - sussurro, enquanto lhe dou um beijo.

Ele fica, porque me ama. Mas depois de algum tempo começa a ficar inquieto.

- O que se passa? - pergunto-lhe, pousando a minha mão na dele, visivelmente trémula.
- Estás a piorar. Precisamos intensificar os tratamentos Inês. - e enquanto o diz não consegue olhar-me nos olhos.
- Estou cansada.
- Vamos, eu levo-te até ao quarto.
- Não, estou cansada dos tratamentos. Cansada daquilo em que a minha vida se transformou. Estou prestes a enjoar o cheiro a morte do hospital. Quero viver tranquilamente enquanto ainda posso. Quero viver tranquilamente ao teu lado, apreciar a tua companhia. Não há nada que os tratamentos possam fazer por mim, agora. Ninguém sabe do que morrerei primeiro, se do cancro ou dos intermináveis tratamentos que fiz para o tentar combater. Tu sabes o quanto lutei. Tu sabes o quanto me esforcei. Não consigo mais. - e, de facto, não consigo, porque é neste momento que mergulho num choro profundo.
O Miguel abraça-me, como só ele sabe fazer. Eu sei que ele não concorda com a minha decisão, mas também sei que fará tudo para me fazer sentir melhor, e não vai tentar deter-me, porque ele sabe, porque sente, o quão cansada me sinto.

Desisti da quimioterapia e de qualquer tipo de tratamento. Não sei se estarei aqui amanhã. O que ficou para trás deixa-me orgulhosa. O futuro, seja ele breve ou distante, é uma incógnita com a qual aprendi a viver. Quem sabe o dia em que a minha respiração será roubada. O dia em que o calor que existe em mim irá desaparecer, como quando deixamos uma porta aberta num dia de inverno, e o frio entra sem permissão, tomando a casa como sua. O dia em que os meus olhos se fecharão e a escuridão passará a ser a minha realidade. O dia em que não poderei ver mais o Miguel. O dia em que três letras serão suficientes para descrever o rumo da minha vida. Ninguém sabe, por isso vivam. Vivam como se hoje fosse o último dia. Não desistam e, em momento algum, estendam a mão ao arrependimento.

Espero ter sido sucinta, tal como a minha vida fez questão de ser.

F-I-M


Para Ouvir: Marcia com JP Simões - A Pele que Há em Mim           Para Ver: The Vow (2012)

Sem comentários:

Enviar um comentário