De erro em erro. De um lado para o outro.

14 de setembro de 2012

O Curioso.


Caríssima,

Li, um dia destes, a carta que decidiu escrever aos nossos governantes (a todos eles, do passado ao presente). Gostei imenso da forma descontraída, quase infantil, com que abordou o tema. É verdade que tem razão em grande parte das coisas que disse, mas permita-me fazer-lhe uma pergunta (e não quero que me interprete mal): que tipo de gelado quer comer?

Bem sei que o mercado não está para (novos) gelados, mas a verdade é que ainda existem alguns em stock. Sim, é provável que alguns deles estejam já fora do prazo de validade e que, depois de provados, não provoquem boas sensações ao nosso paladar (bastante esquisito e selectivo, em alguns casos) mas gostaria ainda assim de relembrar de que eles existem. Sempre existiram.

Mas o mercado tem destas coisas! Há sabores e gelados que não são apreciados pela generalidade das pessoas, outros que, de tanta procura, parecem estar sempre esgotados. Um Magnum de Amêndoa não é, de todo, igual àqueles gelados que, no meu tempo (algo distante, confesso), se vendiam pelas esquinas a dez escudos cada um. Claro que não! Um Magnum de Amêndoa é coberto de um chocolate crocante e delicioso, enquanto os gelados vendidos a dez escudos eram apenas uma espécie de gelo com sabor (que embora indistinto, era fabricado pelas mãos daqueles que os vendiam). Mas, na verdade, eles têm a mesma função: refrescar-nos por dentro (deixar-nos satisfeitos). A diferença é o sabor e a variação de prazer que sente quando prova cada um deles. De qualquer das formas, uma coisa é certa: os gelados do meu tempo deixaram de ser vendidos. Dizem que foi uma tal de ASAE que concluiu não serem vendidos segundo as normas de higiene e segurança no trabalho (por miúdos, bem, deixaram de ser “saudáveis” para as gerações futuras). Daí até serem ignorados e esquecidos pela sociedade foi apenas uma questão de tempo.

Eu digo que foi uma questão de dinheiro e de interesses. Este canto à beira mar plantado estava a crescer, estava a deixar-se influenciar pelas novas tendências europeias e mundiais. Os nossos vizinhos e irmãos estavam cheios de boas marcas de gelados, produzidas descontroladamente e sem qualquer estrutura sustentável. Porque haveríamos nós de continuar a vender o nosso esforço num cone feito de bolacha americana? Acabaram os gelados (e) (d)aqueles que os faziam, e não houve ninguém capaz de elogiá-los ou de aprender tal arte (porque, meu Deus, aqueles gelados podiam ter todos os defeitos, mas eram arte saída da mão de verdadeiros artistas).

Hoje, tantos anos passados sobre os gelados da minha juventude, confesso que até eu os ignorei e esqueci. Não falei deles aos meus filhos mas, agora que a crise chegou (por culpa dos governantes, mas também por culpa nossa), irei certamente falar deles aos meus netos. Não me importo que eles não sejam “saudáveis”. Tenho saudades daqueles gelados, especialmente os de limão, dolorosos de comer, mas estupidamente refrescantes.

Para concluir, deixe-me apenas deixar uma última nota: embora parte da responsabilidade da falta de gelados seja, definitivamente, dos nossos governantes, que em vez de continuarem a valorizar os gelados certamente menos apelativos, mas igualmente necessários, desvalorizaram e descredibilizaram o trabalho de gerações inteiras, outra dela será certamente nossa. Nós, que passámos apenas a olhar para a opinião que as pessoas teriam do gelado que comíamos. Nós, que passámos a invejar o gelado dos outros, só porque o nosso não caía tão bem no nosso estômago. Nós, que passámos a investir anos das nossas vidas na procura do melhor gelado, sem sequer nos importarmos do tempo que levaria até o conseguirmos, ou de como viveríamos se nunca o encontrássemos.

Por tudo isto, caríssima, volto a perguntar-lhe: que gelado quer comer? Porque, sabe, os maus gelados também são gelados. Talvez seja hora de tentar provar um daqueles gelados do meu tempo, se ainda restar alguém para lhe explicar como comê-lo.

Com os melhores cumprimentos,
O curioso

Para Ouvir: Carlos Mendes –  A Festa da Vida                                   Para Ver: Lorax (2012)

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