Caríssima,
Li, um dia destes, a carta que
decidiu escrever aos nossos governantes (a todos eles, do passado ao presente).
Gostei imenso da forma descontraída, quase infantil, com que abordou o tema. É
verdade que tem razão em grande parte das coisas que disse, mas permita-me
fazer-lhe uma pergunta (e não quero que me interprete mal): que tipo de gelado
quer comer?
Bem sei que o mercado não está
para (novos) gelados, mas a verdade é que ainda existem alguns em stock. Sim, é
provável que alguns deles estejam já fora do prazo de validade e que, depois de
provados, não provoquem boas sensações ao nosso paladar (bastante esquisito e
selectivo, em alguns casos) mas gostaria ainda assim de relembrar de que eles
existem. Sempre existiram.
Mas o mercado tem destas coisas!
Há sabores e gelados que não são apreciados pela generalidade das pessoas,
outros que, de tanta procura, parecem estar sempre esgotados. Um Magnum de Amêndoa
não é, de todo, igual àqueles gelados que, no meu tempo (algo distante,
confesso), se vendiam pelas esquinas a dez escudos cada um. Claro que não! Um
Magnum de Amêndoa é coberto de um chocolate crocante e delicioso, enquanto os
gelados vendidos a dez escudos eram apenas uma espécie de gelo com sabor (que
embora indistinto, era fabricado pelas mãos daqueles que os vendiam). Mas, na
verdade, eles têm a mesma função: refrescar-nos por dentro (deixar-nos
satisfeitos). A diferença é o sabor e a variação de prazer que sente quando
prova cada um deles. De qualquer das formas, uma coisa é certa: os gelados do
meu tempo deixaram de ser vendidos. Dizem que foi uma tal de ASAE que concluiu
não serem vendidos segundo as normas de higiene e segurança no trabalho (por miúdos,
bem, deixaram de ser “saudáveis” para as gerações futuras). Daí até serem
ignorados e esquecidos pela sociedade foi apenas uma questão de tempo.
Eu digo que foi uma questão de
dinheiro e de interesses. Este canto à beira mar plantado estava a crescer,
estava a deixar-se influenciar pelas novas tendências europeias e mundiais. Os
nossos vizinhos e irmãos estavam cheios de boas marcas de gelados, produzidas
descontroladamente e sem qualquer estrutura sustentável. Porque haveríamos nós
de continuar a vender o nosso esforço num cone feito de bolacha americana?
Acabaram os gelados (e) (d)aqueles que os faziam, e não houve ninguém capaz de
elogiá-los ou de aprender tal arte (porque, meu Deus, aqueles gelados podiam
ter todos os defeitos, mas eram arte saída da mão de verdadeiros artistas).
Hoje, tantos anos passados sobre
os gelados da minha juventude, confesso que até eu os ignorei e esqueci. Não
falei deles aos meus filhos mas, agora que a crise chegou (por culpa dos
governantes, mas também por culpa nossa), irei certamente falar deles aos meus
netos. Não me importo que eles não sejam “saudáveis”. Tenho saudades daqueles
gelados, especialmente os de limão, dolorosos de comer, mas estupidamente
refrescantes.
Para concluir, deixe-me apenas
deixar uma última nota: embora parte da responsabilidade da falta de gelados
seja, definitivamente, dos nossos governantes, que em vez de continuarem a
valorizar os gelados certamente menos apelativos, mas igualmente necessários,
desvalorizaram e descredibilizaram o trabalho de gerações inteiras, outra dela
será certamente nossa. Nós, que passámos apenas a olhar para a opinião que as
pessoas teriam do gelado que comíamos. Nós, que passámos a invejar o gelado dos
outros, só porque o nosso não caía tão bem no nosso estômago. Nós, que passámos
a investir anos das nossas vidas na procura do melhor gelado, sem sequer nos
importarmos do tempo que levaria até o conseguirmos, ou de como viveríamos se
nunca o encontrássemos.
Por tudo isto, caríssima, volto a
perguntar-lhe: que gelado quer comer? Porque, sabe, os maus gelados também são
gelados. Talvez seja hora de tentar provar um daqueles gelados do meu tempo, se
ainda restar alguém para lhe explicar como comê-lo.
Com os melhores cumprimentos,
O curioso
Apaixonado.
ResponderEliminarPodemos provar o mesmo gelado?